In memoriam Vilém Flusser
    Padre Hubert Lepargneur



    Este texto foi apresentado na cerimônia ecumênica realizada em 04 de dezembro de 1991, na capela do Hospital do Servidor Público (SP), com a participaçde do rabino H. Sobel, em homenagem organizada por amigos de Flusser após sua morte.



    Prezados presentes, estamos reunidos com intensa aflição, em torno da memória ainda tão viva de Vilém Flusser, grande pensador e amigo, amigo nosso, ao mesmo tempo profundo e paradoxal, provocante no pensar, e muito fiel na amizade sem fronteiras. Um vulgar acidente de trânsito apanhou aquele judeu errante que a Shoah não tinha conseguido eliminar com os seus de Praga, Tchecoslováquia, Alemanha, Europa: fim de complicada viagem que não passa de volta ao ponto inicial, Praga, após demorada permanência nessa terra brasileira que abriga ainda parentes e amigos do peito.

    Longe de pretender julgá-lo, sentimos dificuldade em situá-lo: Vilém Flusser faz vacilar nossas categorias. O que é um judeu e o que é um ateu? O que é um cidadão nacional e o que (é) um apátrida, hóspede do mundo? Que identidade inferir de seu destino? Terá seu destino expresso ou traído sua identidade profunda? Como teria ele prosseguido nesse discurso apaixonado, porque Vilém Flusser era apaixonado – da vida, da palavra, das palavras e linguagens, das pessoas, do ser humano me parece-? Que conclusão teria dado ao discurso imprevisível e fatalmente cortado da existência terrestre? Mas quem nega o alpha, a divindade, não tem de negar o ômega, a conclusão, qualquer que seja?

    Paradoxal e profundo, insólito místico da superficialidade, com perdão da contradição, Vilém Flusser irritava e empolgava. Por vezes nós o acreditávamos aqui e estava ali. Sempre próximo e sempre longínquo; transparente e insondável. Na sua História do Diabo e em outros escritos, sugere que tudo não passa de linguagem e que a lei do discurso é a entropia que o vai mergulhar nas águas do silêncio. Como se na noite de seu itinerário, de sua vida, tenha sido muito difícil distinguir Deus e o Diabo, a Palavra que constrói e a palavra que dissolve, a Palavra e o Silêncio.

    Em tamanho deserto, será que nenhum absoluto, nenhum valor transcendente, para este agudo observador do detalhe, tenha perpassado, sustentado sete decênios de vida tão cheia? O misticismo cabalístico latente de Flusser, se é que existiu, é um mistério que nos escapa, mas cabe ressaltar seu serviço, quase culto, do ser humano na sua transitoriedade fenomenal, e sua excepcional vivência da amizade, em relações abertas e diversificadas, sendo eu testemunha como sacerdote. Serão valores prometidos ao nada?

    Como todo ser humano ele tem o sagrado direito a que seu pensamento não seja desfigurado a serviço de uma ideologia ou religião que não professava. A respeito de ideologia, nos apraz saber que sua última preocupação era combater certo reerguimento da mentalidade nazissta e do nacionalismo combativo, chauvinista, obtuso e perigoso, fechado sobre suas ilusões. Quanto à dimensão religiosa, o que nos permite rezar por ele, quem nos aprendeu a rezar por nossos parentes e amigos mortos, cada um agindo evidentemente na linguagem da própria crença, são os Macabeus do II século antes de nossa era: Matatias, o pai, o contestador da helenização imposta aos judeus pelo soberano seleucida e perseguidor, já, Antioque IV Epifánio: Vilém Flusser, o contestador, era de sua raça; os filhos Macabeus: Judas, o libertador, Jonatan, o grande sacerdote assassinado, Simão, outro libertador assassinado (aquele que obteve em 142 a Independência da Judéia e foi pai de João Hircano, chefe da dinastia dos Assmoneus). Cito o livro dos Macabeus: "Tendo organizado uma coleta individual, enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse um sacrifício pelo pecado: agiu assim absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas, se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade, então era santo e piedoso o seu expiatório pelos que haviam morrido, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado"(II Macabeus 12, 43-46). Nesta perspectiva, continuada pela teologia mística da Cabala judaica do século XVI, a Igreja acredita que os que partem podem se beneficiar das orações dos vivos.

    Vilém Flusser, judeu rebelde, amigo e intransigente, tinha um sentido pascaliano do Homem como grandeza e como vaidade, do poder da linguagem, sua espada de fogo, para construir, ou para destruir na mentira, aniquilar na frivolidade e insignificância. Kafka e seu realismo cruel são da família, como também é latente a judeidade.

    Quem viveu por muito tempo fora de seu país de origem sabe o quanto é verdade, oportuna no Brasil atual, esta reflexão de Vilém "Flusser: "Nós, os migrantes, somos janelas através das quais os nativos podem ver o mundo." Podem também preferir o espelho aquático de Narciso e dos bajuladores. Bem disse também que a "pátria do apátrida é o outro". O outro, para nós crentes, é Deus; mas o caminho do outro, apontado por Vilém, se chama trabalho para a paz, atenção aos objetos e às circunstâncias, compreensão mútua, nacional e internacional, racial e inter-racial, continental e inter-continental, entre-ajuda humanitária, solidariedade na história e no mundo. Neste sentido ocorreu, em outubro, o promissor Quinto Encontro Inter-religioso de Oração pela Paz, em Malta, em que confraternizaram o Grande Mufti do Cairo, o rabino Shear Yashuw Cohen, de Haifa, e o arcebispo Henri Teissier, entre outros, consignatários dum Apelo pela Paz em Terra Santa, de que esperamos adiantamento nas reuniões vigentes Madri-Washington.

    É com o mesmo espírito que rezemos o Pai Nosso, oração cristã sem dúvida, mas que soubemos, através da nossa remota leitura do maravilhoso livro Jesus (Yeschoua) de David Flusser (o primo da Universidade Hebráica de Jerusalém, meu primeiro contato com um pensamento Flusser) que não passa de um condensado de ditos do A.T., Pai Nosso.(1)

    Pedimos também ao Altíssimo saúde e conforto para a família Flusser (Michel, Vic, Dina) e especialmente para Dona Edith, a fim que se recupere da melhor maneira possível do próprio traumatismo e desta cruel provação, encontrando na Força suprema e nos amigos o apoio que pode desejar e receberá.



    Padre Hubert Lepargneur




    FotoPlus agradece ao autor por permitir a publicação do texto no Boletim Flusser.



















    Nota:

    1. Existe esta variação no documento original:
      É com mesmo espírito que recordo minha remota leitura de um primeiro escrito assinado Flusser, David Flusser no caso, professor na Universidade Hebráica de Jerusalém, primo de Vilém e autor do livro Jesus, que, admirativo, utilizei como professor de Cristologia no Seminário da Arquidiocese de São Paulo.

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    Página criada por Ricardo Mendes
    02.09.1998 - criação
    02.09.1998 - atualização
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