Em outras áreas, a caridade teria exigido esquecer este tropeço do pensamento (2). Mas no
domínio da fotografia, as obras de reflexão são pouco numerosas e várias
razões impõem que não se deixe passar esta em silêncio. Primeiro, seu sucesso na
Alemanha onde, publicada desde 1983, já alcança sua sétima edição -
lamentamos que o editor francês apresente como datando de 1993 um texto cujas marcas de referência
teóricas já são visivelmente velhas. Em seguida, o prestígio intacto do termo "filosofia":
em faculdades de história da arte ou nos departamentos de artes plásticas,os estudantes persistem
em mencionar com um respeito desproporcionado a medíocre Philosophie de la Photographie de
Henri Vanlier (3), e pode-se recear que o livro de Flusser venha alimentar um apetite teórico por vezes muito
fácil de saciar. Finalmente, este ensaio apresenta um desfile muito interessante das principais defeitos
associados às tentativas de pensar a fotografia - do qual se reencontrará por exemplo indícios
em Roland Barthes. Com uma pequena diferença: onde, a qualidade da reflexão da semiologia oculta o
sintoma, este se manifesta em Flusser com uma limpidez clínica. É então como se
lerá isto: às avessas, como um manual de tudo que é desejável evitar para
pensar a fotografia.
Metafísica ou ignorância?
O leitor pensará em uma severidade excessiva da crítica? Façamos julgar, e isto desde as
primeiras frases do preâmbulo que põe em princípio que teria havido "dois cortes fundamentais
na cultura humana desde sua origem. O primeiro, ocorrido na metade do II milênio antes de Cristo, pode ser
chamado "invenção da escrita linear"; o segundo, do qual somos testemunha,
"invenção das imagens técnicas" (Flusser, p.7). Face à complexidade
desencorajadora do mundo moderno, não se fica pouco aliviado ao descobrir a existência de um
universo tão simples, onde tudo é apenas luxo, calma e volutuosiedade intelectual. No trecho, pode-se
apreciar uma das fontes essenciais deste processo de simplificação. O texto mostra-se particulamente
avaro de referências históricas, mas, ainda que traz como este ("por volta da metade do segundo
milênio antes de Cristo"), percebe-se após observação que não corresponde a
nada de preciso. A imprecisão é uma das condições que autorizam a formular
hipóteses grandiloqüentes, apoiadas sobre afirmações tão peremptórias
quanto inverificáveis. Obra do acaso? Bem ao contrário. Ante a repetição
sistemática do procedimento, pode-se constatar que o inverificável se apresenta como sistema,
graças ao álibi de um pensamento livre ("Para preservar o carácter hipotético
do ensaio, não se dará uma bibliografia"): evitando com dedicação de prover qualquer
referência, qualquer exemplo que seja, o autor procura a construção do raciocínio, livre
da complexidade incômoda do progresso histórico.
Não se discutirá aqui a tese de Flusser - isso seria fazer crer que tem uma -, mas apenas o
aspecto sintomático da obra. Pois, se o diabo está nos detalhes, o que se abriga aqui encoberto
pelo vago, pelo impreciso e pelo inverificável não é outra coisa que a boa e velha
metafísica: refúgio do espírito quando falta informação - refúgio
onde se abrigavam os filósofos de outrora em questões de física, astronomia ou medicina,
à espera que a ciência os dotasse com luzes mais convincentes. Sobre a base de uma cultura geral
vacilante, Flusser trai, pelo esquematismo de oposições binárias, o recurso permanente desta
forma de raciocínio. A demonstração tão flagrante quanto desajeitada do demônio
metafísico nos faz esquecer que o semiólogo sutil que era Roland Barthes, no que concerne à
fotografia (embora com uma elegância e uma elevação de espírito que torna a
aproximação difícil), não encontrou outro caminho que o da procura da
"essência" de uma Fotografia dotada, ao longo de todo La Chambre claire,
dotada de uma respeitosa e significativa maiúscula? Não desagrada aos (raros) herdeiros da
fenomenologia, reconhecer uma vez por todas que é incomparavelmente mais fácil explorar o
vocabulário na busca de uma pretensa "essência" que afrontar e descrever a infinita
variedade mental de uma prática.
Transformar o ensaio?
O exame das teses de doutorado defendidas tendo como tema a fotografia o provam: ela representa
a priori um objeto de grande curiosidade teórica (5). Encruzilhada onde se cruzam as questões
da estética e da técnica, da representação e da modernidade, a fotografia constitui
com razão um local de destaque para o pensamento contemporâneo. É frente a demanda
téorica real que existe neste domínio que deve ser medida a decepção provocada por
uma obra como a de Flusser. Não somente por causa de sua própria insuficiência, mas porque
ela remete aos defeitos da maior parte das tentativas neste tópico.
Desde a Pequena História da Fotografia de Walter Benjamin (1931), a reflexão sobre
este meio adotou de bom grado a forma do ensaio. Gênero certamente muito prestigiado para o
exercício intelectual, onde o estudo ou o tratado chega a restabelecer o equilíbrio para
úteis confrontações. Gênero onde as características revelam-se porém
perigosas, quando torna-se o modo exclusivo de trabalho teórico. Mais leve que o tratado, o ensaio ocupa
na tradição filosófica o papel de arado de novas idéias. Situado como posto de
vanguarda da reflexão, espera-se que sua verificação, ou sua negação, sejam
demonstradas pelos trabalhos mais demorados e rigorosos. Ele constitui muito precisamente uma etapa, de
caráter provisório. É por isso que admite-se que ele possa passar como um aparato pesado
de investigação bibliográfica. No caso da fotografia, esta licença se transformou em
salvo-conduto autorizando um exercício fundamentalmente diverso.
"É possível surpreender-se com a ausência de bibliografia. Isto porque este livro
não foi escrito a partir de livros, mas de fotos"(6), comenta arriscadamente Henri Valier, visivelmente
constrangido, em sua Philosophie de la photographie. Além do burlesco da a
rgumentação (não se questiona a finalidade das referências livrescas em Gombrich
ou Panofvsky, ainda que eles falem de quadros...), a ausência de indicações
bibliográfias ilustra o fato que Vanlier, como Flusser, como Barthes, retomem a cada vez a
questão do ponto zero, como se nenhum precedente fosse digno de ser mencionado, como se
nenhum precursor tivesse cultivado o domínio. Além das nuances particulares, esta
pretensão funda-se geralmente sobre a ignorância. Quando se ergue algumas etapas mais
tarde - novamente dissimulado de modo hábil em Benjamin - em método abertamente
reivindicado, percerbe-se que o mal está feito. Um último exemplo recente:
LŽOeil naïf, de Régis Debray, no qual a apresentação e o
próprio título retomam, desenvolvem e exemplificam a argumentação já
apresentada por Barthes. Sobre o pretexto de que "a fotografia se subtrai" (Barthes) (7), ou que ela
"escapa da âncora do conceito" (Debray) (8), as duas obras, com uma falsa humildade que o
valha reinvidicam uma espécie de amadorismo do pensamento, mistura de intuição e
biografemas, que seria provavelmente mal aceita em todas outros setores que não esse.
(Sem dúvida é necessário fornecer novas ferramentas teóricas para
abordar uma atividade que resiste efetivamente aos chavões, mas a melhor solução
consiste, para isso, em dispensar toda a bagagem do método?)
Ajustar este dissenso pacientemente elaborado não será possível de um hora para outra.
Mas justamente: um das conclusões que poderia produzir a leitura de uma obra como a de Flusser é
talvez de que seja tempo de abandonar a sedução do ensaio e passar para outra dinâmica, outro
regime. Se a obra de Flusser só tiver servido para isto, não terá sido completamente
inútil.